sábado, 18 de setembro de 2010

Primeiro, era a falta.

Amanhecia e era denso. No céu, apesar da fuligem da madrugada, os primeiros raios surgiam a fórceps pela largura das nuvens. A previsão não era de um dia bonito, nem de um dia feio. Mais um dia e só, como havia sido ontem e provavelmente depois e depois de amanhã. O importante era o minuto, ela sabia. Primeiro, o instante de constatar que o relógio tocava e ela ainda não tinha morrido, o que era um fardo cotidiano. Depois, vencer a água apitando no fogo, o café e o pão com manteiga, o ferro deixando vinco na roupa de trabalho, o pulso buscando a bolsa deixada no banco da cozinha. Então, os passos em direção ao ponto de ônibus, o bom-dia para o motorista, o barulho da catraca girando, a pressão do sangue sobre as pernas no trajeto, uma hora em pé, a comida do almoço, o trabalho na mesa, e assim, tic e tac, sucessivamente, até a redentora hora de dormir para quem sabe nunca mais.

Ela nem imaginava de onde vinha aquela ausência, uma lacuna que se abriu dentro do rasgo do peito quando era menina e nunca mais fechou, nem com as lágrimas de anos, nem com o avançar do tempo na maturidade. A dor resolveu viver ali, dormir ajeitada nos cachos do cabelo que lhe alcançavam as costas, bonita que era em seus trinta e poucos. Não se lembrava de ter sonhos e nem pesadelos, nunca tinha febre e nem saúde de ferro, não gostava de batom vermelho nem cor-de-rosa, não preferia a chuva ao sol (nem vice-e-versa). Viver era seguir em frente e repousar a respiração concentradamente no colo para, quem sabe assim, evitar que as bordas do buraco se expandissem para um não-ser maior.

Mas aquela manhã agitava-se diferente. Nada declarado pelo mundo em altos brados, mas a impressão que se insinua no modo como o vento toca o rosto na hora de abrir a porta da frente. Foi assim, quase com carinho, que a rajada da manhã interceptou o último bocejo quando ela destacava o pé para fora. Sem notar qualquer poesia, seguiu em frente. Na esquina, antes que pudesse adivinhar com qualquer dos cinco (sete, vinte) sentidos, uma figura destacou-se na rua. Era homem e usava chapéu, apesar da incongruência com os dias atuais. Olhos de castanho claro, duas avelãs, e boca vermelho-maçã. O rosto, marcado talvez pela varíola, tinha a aspereza da casca da goiaba e o cabelo, que escapava aqui e acolá na ladeira da cabeça, era mais amarelo do que um pedaço de pêssego tenro. O homem era todo feito de fruta.

O instante virou ventania, assoprou um turbilhão de reviravolta. A saia rodopiou num xote sobre a cintura, os pés bailaram como se fosse palco e um cheiro de jasmim atrevido empertigou-se nas narinas. Tudo pululava, tudo era pandemia. Ela não sabia se era o coração que retumbava no peito ou uma aurora bêbada que rachava a madrugada sonolenta sobre as pálpebras. Em solavancos, a alma aquecia e exigia, com esforço, cada teia da vida. Quando mais o homem se aproximava, já assim, poucos centímetros adiante, mais o ar faltava aos pulmões, mais os lábios separavam-se para dar espaço ao rugido mudo. Até o momento em que se cruzaram. Ela, tonteada pelo que não se explica, parou a meio palmo. Ele, um pouco a frente, virou-se e com um gesto gentil (tão gentil que quase obsceno), e lhe deu um...

- como vai?

Naquele instante, sem maiores explicações, o buraco fechou como se tivesse zíper. Ela lembrou do sonho da noite, algo com castelos. Sentiu a febre arder nas têmporas. Cismou que gostava da chuva. Quis um batom bem vermelho. Amou o dia. Já não importavam as sequências, os minutos. Mas quando deu por si, nada do homem, nada de cheiro, nada de sombra, nada de fruta. Desesperada, colou cambaleante ladeira abaixo. Onde estava? Quem era e por que era? Nada.

Ainda perguntou pela vizinhança, por acaso o pessoal da padaria tinha visto um homem alto e magro com chapéu? Não. No ponto de ônibus? Não. Aquela senhora na janela, teria visto? Não. O casal de enamorados na esquina? Não. A mãe que levava o rebento ao colégio? Também não. Ele foi. Ou não foi pra nunca mais.

E desde então foi a procura.

Sem buraco, só a dor.

Agora, a busca.


* Imagem: Madonna, de Eduard Munch

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