sábado, 11 de setembro de 2010

Quem me ensinou a voar...

Eu não era uma menina de muitas palavras, mas brigava feito o demônio. Ele não era um menino de muitas ações, mas imaginava que era o diabo. Vivíamos na distância que impõe a pré-puberdade, a atração irrestrita do outro e a repulsa em acreditar na maturidade repentina do corpo (que vai tomando formas onde nem se imagina).  
Tom (um nome pequeno e melancólico) era novo na vizinhança. Disso eu sabia e era só. A primeira vez que nos encontramos (numa tarde de sol teimoso, que nunca ia embora), ele me pediu para guardar um segredo. Baixou o corpo até o meu ouvido (eu nasci desprovida de altura, ele era imenso feito uma montanha, armadilhas da genética) e disse baixinho:
“eu sei voar”. 
E eu ri, ri como se fosse inevitável desconfiar. Ri uma gargalhada tão alta que ele corou no meio da praça e, indignado, rodou sobre os pés e foi embora. Fiquei quinze dias sem pousar os olhos nele, mas esperei com pressa. 
Depois, numa manhã um pouco azul, um pouco amarela, ele surgiu na ponta da rua. Andava tão desengonçado que parecia tropeçar no ar. Meu coração pulou. Ele foi chegando no meio da garotada, olhando em semi-círculos de timidez, e me chamou de lado.  
“Acredita hoje?”, me perguntou.  
“Só se você mostrar”, respondi, com medo de fazê-lo desaparecer mais uma vez.  
“Então vem comigo”.  
E eu fui. 
Atrás da igreja da cidade, protegidos pela sombra de uma jabuticabeira, ele pegou na minha mão.  
“Quer ver como se voa?”.  
“Quero, mas duvido”.  
“Fecha os olhos”.  
“Se você me zoar eu te bato” (eu era mesmo danada de brava). 
“Fecha os olhos”.  
Eu obedeci e ganhei o meu primeiro beijo na boca. A impressão que eu tinha, naquele instante daquele dia longínquo naquele pequeno território da minha infância, é de que o mundo acabaria na nuvem que se formava sob meus pés. Tom sabia voar, e me ensinou. 
Nunca mais nos beijamos, não assim, nem quando eu aprendi que meu ventre queimava, nem quando parti da cidade em busca do meu porto no Rio de Janeiro, nem nos meus fortuitos retornos à terra natal, mas trocamos segredos a vida inteira, as sensações, os espaços, os desavisos dos dias. Ele cresceu bonito, foi ganhar São Paulo, virou poeta. Hoje, casado e pai de uma garotinha ruiva, me liga toda semana para contar suas novas invenções. É meu melhor amigo, foi meu primeiro amor.  
Depois de tantos homens, tantas histórias, tantos enredos, ainda acho que ninguém me contou tão bem uma façanha. E eu nunca mais voei tão bonito.

7 comentários:

  1. Gostei do texto, minha cara. Achei-o bastante singelo e deleitoso.
    Grande abraço,

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  2. Que lindo, Giovana.
    Que texto envolvente, mágico, que nos transporta à história contada como quem voa em pensamentos e sensações. Voei enquanto lia e permaneço com um delicioso sorriso no rosto. Adorei!
    Beijo grande,

    Ivan Bueno
    blog: Empirismo Vernacular
    www.eng-ivanbueno.blogspot.com

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  3. Giovana, que delícia de texto! Quem de nós não voou assim, desapareceu em um beijo e depois retornou, transformado, transformando o mundo também?
    Lindo!
    beijo!

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  4. Ah, que bom que todo mundo fez o voo comigo!!! Que delícia ler os comentários...brigada.

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  5. Excelente texto.
    Parabéns pela narrativa, muito boa.
    Um beijo.

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  6. Oi minha querida, como podemos transformar nossa vida em um voo, como podemos transformar os momentos em verdadeiras magicas que pareciam impossiveis.... como è bom viver, melhor ainda poder escrever. Parabens por voar no texto... beijos!

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