domingo, 24 de outubro de 2010

“Minha pátria é minha língua”

Creio nunca ter declarado minha paixão pela língua portuguesa. Faço-o agora nestes tempos de reforma.
Desde minha época de colegial fui inclinado às letras. Sentia, sem consciência disso, um prazer em escrever, em criar. Da mesma maneira que tenho prazer em sentir em minhas mãos um livro (tema para uma próxima crônica), tenho em manusear as palavras, buscá-las, tratá-las e fazer com que exalem sensações que arrebatem o leitor, se tanto posso.
Esse prazer não se resume ao ato da criação, mas também ao da leitura, inda que não inserido numa dissertação ou história. Como assim? Gosto da palavra pura, apartada de um contexto. Gosto de vê-la em sua simples construção e formação, especialmente as mais antigas.
Por exemplo: gosto da palavra escrita na era medieval “anarante”, que significa “ignorante”. Acho-a mais prática, por assim dizer. “Chanto” por “pranto”. Nessa mesma linha de praticidade, as palavras cujo “g” mudo foi suprimido (coisa muito e voga na era renascentista, veja Os Lusíadas), como, por exemplo, “dino” em lugar de “digno”; ou aquelas cujo prefixo “sub” era substituído, a desejo do autor, pelo “so” em palavras como “subjugado”, ficando “sojugado” (tendo também a variação “sojuzgado”), “submeter”, tornando-se “someter”, e assim por diante.
Agradam-me as conjugações arcaicas, especialmente a do verbo “ser” no presente do indicativo: eu “soo”, ou “sejo”, ou “son” (como “m” ou “n”); tu “sês”; ele “sê” (daí o imperativo “sê” da segunda pessoa do singular). Ou a do verbo “estar” do presente do subjuntivo: tu “estês”, ele “estê”. Ou a do verbo “impedir” do indicativo: eu “impido”; e as do subjuntivo: eu “impida”, tu “impidas”, e por aí vai.
Aprazam-me ainda os termos (e digo isto sabendo que meu conhecimento acerca da língua portuguesa arcaica é totalmente baseada em pesquisas que fiz ao longo das minhas leituras de manuscritos encontrados na internet e de livros cuja grafia teve-se o decoro de manter-se, para o meu deleite), me aprazam ainda os termos com acréscimos de vogais, como por exemplo “alevantar” ou “escuitar”; e ainda os de inversão, como “tromento” e “prefeito”(que significava “perfeito”, já que este era “perfecto”, da mesma forma que “aspecto” era “aspeito”).
Gosto das abreviações que se fazia, segundo minhas pesquisas, na época renascentista. Por exemplo: “que”, redigido “q”; “quẽ”, na maioria das vezes escrito “q” com um til em cima; “ũa”, a mais famosa; e outras palavras cujos emes ou enes eram substituídos pelo til, qual “ẽblema”. Tudo para facilitar o processo de impressão de livros, o qual na época era feito à mão. E gosto ainda das escritas sem o “h” inicial, como “omen”, ou “ome”, ou “omẽ”, “ora” (significando “hora”). Ou as com o “h”: “húmido” (que até antes da reforma era presente na ortografia de Portugal). E ainda as com o “c”, “b” ou “p” mudos, sendo muitas ainda existentes hoje: “sancto”, “subtil” (que era às vezes “sotil” e não sei se até recentemente vigente em Portugal), “concepto”, que se encaixa na regra do parágrafo anterior. Tais abreviações eram aceitas por todos à época, uma vez que não havia um registro formal da fala, isto é, uma gramática.
Também acho interessantes as proparoxítonas, as paroxítonas terminadas em ditongo crescente (e às vezes as dos hiatos “i” e “u” [digo às vezes por acreditar que tal acentuação fosse optativa]) e as oxítonas terminadas em “-em” não acentuadas (tudo ainda vigente no século passado).
O que me encanta, no fundo, de modo geral, é a liberdade, que promoveu a mudança da língua até os dias de hoje, que se pode ter ao falá-la e mesmo ao escrevê-la, a beleza que ela, e a praticidade, e a necessidade propiciam aos nossos ouvidos e olhos.
Desse modo, não deixo de achar no mínimo estimulante essa reforma ortográfica recente.
Gostei parcialmente da alteração na regra do hífen e achei interessante a exclusão dos acentos nos ditongos “ee” e “oo”. O que me leva a pensar que talvez devesse-se minorar os acentos, facilitando a regra, deixando-se de acentuar as proparoxítonas e as paroxítonas. Seria confuso? Nos acostumaríamos. E ainda alterar-se as concordâncias verbais e nominais, facilitando-as. E talvez a regra dos porquês, adequando-a à da acentuação.
Ouvi falar que queria-se unir os termos “por isso” e “de repente”, ficando “porisso” e “derrepente”. Não sei se seria interessante, ou mesmo bonito, mas vale a liberdade de que falei. E fico pensando que nessa mesma linha de raciocínio serviria “assinquê”, “paraquê”, enfim. Mas, idem.
A língua portuguesa irá mudar muito ainda; e acredito que um dia ela morrerá, como já dissera Pessoa: será estudada como base da língua derivada dela, inda que tendo absorvido outras línguas, considerada por muitos como mais bonita ou requintada, falada por uma pequena minoria culta e por fim (ou “porfim”) será morta.
Mas não importa: enquanto ela durar, com suas mudanças, sua evolução, será bela e eterna. Desculpe Vinícius. Ou eu o desculpo.

Um comentário:

  1. Eu fomentaria essas palavras em mim para sempre, ficaria aqui com sua continuacao!

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